quarta-feira, 1 de junho de 2011

Envangelho segundo São Yuri

A caminho do escritório, depois de um almoço repentino em casa de minha avó, parei mais uma vez no semáforo de Sete Rios, onde se vendem os Borda-de-Água, essa publicação que permanece para nos recordar os tempos idos. Normalmente, os vendedores vão variando e os produtos vendidos também, sendo a nacionalidade dos mesmos a única constante. Desde pensos rápidos à revista Cais, ao referido Borda-de-Água ou a simplesmente um obrigada, tudo se vende e se pede enquanto o sinal está fechado.

Normalmente, depois de trancar a porta no cimo da rampa mas sem fechar a janela, vou por ali abaixo a torcer para que não me peçam nada. Até porque tenho imensas dificuldades em dizer que não e fico com a consciência dorida cada vez que minto, dizendo que não tenho nada. Normalmente, para evitar gastar uma renda mensal naquela portagem diária da consciência, dou cigarros em troca de me levarem também o sentimento de culpa. A maioria deles fuma e, por isso, vou-me safando incólume.

Porém, hoje foi diferente.. Pensei que ainda passava no verde, mas o carro à minha frente só andou quando devia estar parado, e lá fiquei eu com a pole position que ninguém quer. No entanto, até tinha umas moedas que tinham sobrado no porta-copos. E por isso, peguei numas quantas e estendi o braço pela fresta da janela àquele homem que me mostrava o Borda-de-Água e umas resmas de pensos rápidos. E apesar de estes sapatos me estarem a dar cabo dos pés, entreguei-lhe as moedas e disse que não queria nada. Era um homem de idade imperscrutável. Entre 35 e 55 nada me pareceria estranho. Pele tisnada, barba curta e alguns grisalhos, envergava um t-shirt velha e suja, farda habitual do seu negócio de rua.

Agradeceu-me e desejou muita felicidade e saúde, a mim e aos meus. Mas quando me preparava para que ele passasse à próxima janela e ao próximo freguês, ele continuou. E do que eu percebi do seu português intermitente em sotaque eslavo, o senhor, a quem carinhosamente apelidei de Yuri, por não saber mais nenhum nome russo, disse qualquer coisa muito importante. Tomei a liberdade de traduzir e adaptar conforme o que consegui perceber:

"Deus ajuda, sabe? Deus é muito bom e ajuda muito. A vida é muito difícil. E a culpa não é do governo. É difícil, sabe? Renda muito cara para pagar, 5 filhos para alimentar, é muito difícil. E apesar de ser difícil acreditar em Deus nessas alturas, eu peguei na bíblia no outro dia, a lá dizia que Deus ajuda, e ajuda mesmo. Deus ajuda sempre. E nós temos de agradecer"

E o sinal abriu.. Enquanto o senhor pregava, consegui apenas balbuciar repetidamente; eu sei, pois ajuda, pois é e obrigada. Ou seja, não me disse novidade nenhuma. Como boa ex-beata-super-praticante que fui, sei a catequese toda, lembro-me do que se tem de dizer na missa, a minha parte e a do padre, sei quando é que é para sentar e para levantar, lembro-me bem das passagens bíblicas. Porém, hoje recebi a mesma palavra que tanto prego, da boca de alguém que, certamente, tem uma vida bem mais difícil que a minha. Isso, fez-me recuperar um bocadinho da fé perdida porque, realmente, aquela mensagem de vida que o senhor me transmitiu como pôde valeu mais que 500 missas. E definitivamente valeu mais do que os 80 cêntimos que lhe passei para a mão.

Devia ter dado mais. Devia ter oferecido um cigarro.

1 comentário:

Sofia disse...

Claramente... vai trabalhar mulher!!!