Nunca
te pedi flores, não foi isso que falhou. Pedi-te respeito, atenção, amor até,
mas flores não.
Pedi-te
que não me exigisses mais do que exiges a ti próprio, pedi-te que fosses equipa
em vez de patrão, pedi-te que te lembrasses que dar valor às pequenas coisas do
dia-a-dia que vou resolvendo por nós em vez de as tomares como algo adquirido
e, bem vistas as coisas, sempre insuficiente.
Se
não gosto de flores? Claro que gosto de fores, se não fossem usadas como
contrição das tuas falhas. Se fossem apenas flores, claro que tinha gostado.
Mas as flores perecem e daqui a duas semanas, depois de mortas, já não existirá
mais nada para nos recordar desse teu grande gesto para equilibrar os pratos da
balança ou para agradecer o esforço a mais que faço pela equipa.
Porque
é que o faço? Bem, duas razões: a primeira é porque se não o fizer, tu não
fazes e dás-te ao luxo de declarar a mulher incompetente que sou pelo facto da
casa estar assim, a má mãe que sou porque me demorei mais tempo no trabalho, ou
a desleixada que sou porque deixei de ir ao ginásio ou porque já nem me esforço
para te agradar, que eu antes, no princípio, não era assim. A primeira razão é
de facto já não querer mais discutir e ser mais uma vez criticada pelo facto de
não preencher todos os critérios de ser uma boa mulher. Eu sou melhor mulher do
que tu és homem e vens outra vez com esse ramo de flores como se apagasse todo
um ano de críticas infundadas.
A
segunda razão pela qual assumo o governo da casa e dos filhos quando esse
trabalho deveria ser para uma aldeia inteira e não para uma pessoa sozinha que,
no meio disso tudo, ainda tem de encontrar 10 a 12 horas livres para trabalhar,
sem esperança de alguma vez ganhar o mesmo que tu, é porque eu fui educada
exatamente da mesma forma que tu. Na minha casa também tudo aparecia feito,
roupa lavada, comida deliciosa. Também tenho isso como ideal. Tudo impecável. E
na minha casa, era uma mulher que tratava de tudo e eu sinto-me culpada por não
conseguir fazer igual. Sinto-me estupidamente culpada. E tu que usas essa minha
culpa contra mim e criticas, mesmo que silenciosamente, a minha insuficiência
todos os dias, hoje que é dia da mulher, vens me com flores?
Logo
hoje que me sinto tão culpada por me sentir culpada. Eu sei que não tenho
qualquer culpa. O paradigma mudou. Ambos trabalhamos fora de casa desde que à
mulher foi reconhecida a existência de cérebro, o que depois do reconhecimento
da alma foi uma grande evolução civilizacional. Somos inteligentes,
multifacetadas, muitas vezes até melhores que os homens que nos rodeiam, mas
isso é melhor que não reparem, para não se sentirem ameaçados. Vivo rodeada de
mulheres que se diminuem para não afastar os homens, porque ninguém quer estar
ao lado de mulher com opiniões.
Tu
fazes ideia o que eu já ouvi na vida pelo facto de ser mulher??? E eu nem sou
das que mais padeço com esta condição. Talvez devesse deixar de resistir, eu
sei, parar de lutar e resignar-me como a maioria. Tratar eu de tudo, prejudicar
a minha progressão de carreira, já mais difícil à partida e faltar eu, mais uma
vez, para levá-los ao médico. Talvez devesse deixar-me destas coisas de dizer
que sou feminista. Até porque as mulheres, deste cantinho latino da Europa,
ainda acham que as feministas ou são lésbicas ou cabras que não fazem a
depilação.
Talvez
devesse esquecer as meninas que à nascença são afogadas na Índia, ou as que são
sujeitas a excisão genital na adolescência, as crianças que são obrigadas a
casar, as mulheres que vivem sem possibilidade de decidir o seu destino sem
autorização do marido, as meninas a quem não é permitido estudar. Talvez
devesse esquecer-me de tudo isso e assumir de uma vez por todas o papel que
esta sociedade escolheu para mim, resignar-me e dizer, como as outras, que não
sou feminista, justificando com o facto de o feminismo já não ser necessário.
Estou exausta e se calhar é o melhor que tenho a fazer...
Nunca
te pedi flores, mas obrigada, as flores são lindas e agradeço o gesto, mas a
sua insuficiência é de uma atrocidade tal que não me consegui calar. Desculpa
lá ter explodido assim. Sim, se calhar são as hormonas ou outra coisa qualquer
daquelas que só as mulheres têm de suportar. Deve ser isso. Deixa-te estar no
sofá, vou buscar uma jarra.
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