Na noite de dia um, já deitada para dormir, e sem que nada pudesse prevê-lo comecei a chorar, a lavar a alma para o novo ano. Não vi filmes tristes, não estava naqueles dias, mas desta vez liguei no cérebro uma secção que há muito tempo estava em stand-by: a secção avô. Liguei-a sem querer e quando me apercebi era tarde de mais. As lágrimas corriam e o desespero e angústia da saudade e da culpa subiam todas aos meus olhos por desmaquilhar, ao mesmo tempo que tentava impedi-lo com as mãos, sem qualquer resultado. E eu só queria dormir e ele nunca mais chegava.
Quando finalmente chegou, já tinha ido buscar todas as recordações, toda a saudade, todo o amor que tinha enterrado há seis anos atrás e já não havia nada a fazer não ser soluçar no seu abraço até à desidratação. Assim o fiz. E expliquei-lhe de onde vinha toda a tristeza, como se não soubesse tão bem, ele que também já passou pelas suas perdas, em dose dupla.
Mas eu contei-lhe outra vez, que o meu avô, o meu único avô, foi também o meu único pai. E foi um pai melhor do que foi para os filhos, segundo a minha avó. Se por ter mais tempo ou por ter percebido o que perdeu dos filhos com as ausências necessárias, não sabemos. Sei apenas que o meu avô esteve sempre presente e eu sempre fui a menina dos seus olhos. As minhas primeiras palavras foram avô e avó.
Desde sempre me levou ao colégio de carro e até à porta do ciclo a pé, até que lhe disse, em forma de pedido, que não era preciso. Sempre me preparou o pequeno-almoço e me apertou os atacadores do que quer que tivesse calçado, durante muitos anos após já saber fazer o laço. Era ele que me contava as histórias e me explicava o mundo e ainda hoje vejo o mundo pelos seus olhos.
O sonho dele era que fosse médica. E o meu também, até que a escrita foi mais forte e cometi o erro de ir para humanidades. A partir daí, o sonho dele era que tirasse o curso de Direito. E foi o que fiz. E apesar de, nessa altura, ele ainda cá estar, já cá não estava. Eu contei-lhe e ele sorriu e disse qualquer coisa como "obrigado meu Deus", mas o Meu avô já não estava cá. Nunca cheguei a conclusão nenhuma sobre de onde me vinha a motivação para as boas notas e comportamentos exemplares. Nunca consegui perceber se era por mim, se era por ti que o fazia. Mas sempre agi querendo em cada gesto agradecer-te, a ti e à avó, por tudo o que fizeram por mim.
Outro sonho do meu avô era que eu ficasse "entregue" que significava, na sua linguagem machista, ao lado de um homem que tomasse conta de mim. Ele ainda te conheceu, mas tu nunca o conheceste como queria.
Sempre quis ter bisnetos e nem eu, nem as minhas primas fomos a tempo. Sempre nos quis ver casar e eu sempre achei que, se isso acontecesse, era com ele que eu entrava. Hoje em dia, tenho a certeza, que a entrar, entro sozinha.
Tantas coisas que não chegaste a ver, porque sempre vivemos a vida sem pressa do fim, a adiar as coisas porque o tempo era nosso. Mas não era.
Tenho saudades do tempo em que achava que o meu avô ia viver para sempre. E tenho ainda mais saudades do avô que desapareceu, ainda com muito para viver. Vou ter de cumprir a tua promessa e levar a avó à Madeira, para ver se compenso a tanta falta que lhe fazes. E vou sempre carregar a culpa do "e se" comigo, não há nada a fazer. Se eu soubesse o que sei hoje...
Sei que estás comigo porque te sinto, na minha cabeça e no meu peito, todos os dias. E agora choro tudo de uma vez, e ensopo a almofada por todas as almofadas secas deste coração, que esteve amorfo estes anos todos, só mesmo porque alguém tinha de segurar o barco.
E agora adormeço embalada nos braços de alguém que toma conta de mim. Estou entregue! Podes dormir descansado..
2 comentários:
Que texto perfeito. identifico-me tanto, mas tanto com o teu texto (não por um avô, que tem um sabor especial), mas pelo meu pai. Como te entendo, desde o inicio até à parte em que não nos permitimos ir abaixo porque alguém tem de continuar a navegar. Só nunca achei que era para sempre, sempre achei que era por pouco tempo e que me seria roubado em novo e que nunca teria cabelo brancos. assim foi. Talvez por isso tive tanta pressa em ser mãe. O meu pai morreu quando o meu filho tinha 9 meses, e embora ele o tenha conhecido, o meu filho nunca irá conhecer a essencia de um ser maravilhoso como era o meu pai. Entendo-te tanto. Um beijo e vai a correr com a tua avó à Madeira, vais sentir-te bem quando o vivenciares.
Obrigada pelo comentário maravilhoso pseudodivorciada. Sabe bem ser entendida. Bjs
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