quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Só se adora a Deus

Tenho muitos ódios de estimação em relação a diversas palavras da língua portuguesa. Não que os vocábulos em si me tenham feito mal algum, coitadinhos. Mas muitas vezes são banalizados de formas erradas ou extremamente irritantes por determinados grupos de pessoas, ao ponto de deixar de conseguir utilizá-los ou fazer um esforço para não revirar os olhos de cada vez que os oiço.

Para além da palavra "original", cujo ódio já expus anteriormente, tenho ódio visceral ao verbo ADORAR, especialmente porque, na maior parte das vezes, as pessoas não sabem utilizá-lo, nem o que significa.

Não sei se por é por ter feito a primária num colégio de freiras, ou por já ter sido "zelota", mas cada vez que oiço ou leio alguém que diz: Adoro-te ou Adoro-te muito ou Adoro aqueles sapatos, oiço resposta automática de um coro de criancinhas histéricas de oito anos a responder instantaneamente na minha cabeça: SÓ SE ADORA A DEUS!!!!!

Quase como reflexo condicionado de Pavlov, era isto que se respondia a quem ousasse proferir o verbo adorar relativamente a qualquer objecto da frase que não Deus, ou qualquer outro dos dois elementos da santíssima trindade (para quem não sabe: Jesus e Espírito Santo). Nem os Santos ou Virgem Maria são passíveis de adoração, mas sim de veneração, de acordo com a igreja católica.

É certo que a adoração não tem de ser necessariamente uma adoração religiosa. No entanto, a utilização leviana que é feita deste verbo, na ânsia de substituir o verbo amar que, como todos sabem, é muito feio de se dizer é completamente incorrecta, estapafurdia e sem qualquer tipo de efeito útil. Senão vejamos:

A adoração é definida no dicionário como amor extremo, excessivo, implicando actos específicos de devoção direccionados a um ser sobrenatural podendo ser um deus ou uma divindade. Ora, apesar de gostar muito de sapatos, não penso serem qualquer coisa de divino e apesar de amar o meu namorado não o acho um deus.

Assim, ao evitar dizer amo-te, substituindo-o por adoro-te está-se a dizer amo-te excessivamente, o que não faz sentido nenhum, malta.

Pode-se achar graça, gostar, gostar muito, gostar tanto, gostar mesmo, estar apaixonado e amar. E por alguma razão as pessoas utilizam a palavra adorar para substituir, indiferenciadamente, as expressões que acabei de referir, sendo que todas têm um significado completamente diferente.

Achar graça acontece quando se acaba de conhecer uma pessoa ou de ver uma coisa que desperta em nós qualquer coisa que nos impele ao flirt inadvertido e descarado, a uma paragem de 10 segundos de frente para uma montra, simplesmente porque sim, porque achamos graça.

Gostar ocorre quando, depois da graça, concluímos que as nossas suspeitas iniciais estavam correctas e aquela pessoa e/ou coisa tem de facto qualquer coisa especial que nos leva a querer conhecer ainda mais.

Gostar muito acontece depois das duas fases anteriores, quando conhecemos melhor a pessoa/coisa em questão, quando já pensamos nela quando não estamos com ela, quando já temos vivências juntos.

Gostar tanto acontece quando o gostar muito já soa a pouco, quando se gosta mais do que muito, quando começamos a ficar preocupados, se o objecto da nossa afeição nos corresponde ou não.

Gostar mesmo ocorre quando se tem a certeza que aquela pessoa/coisa é importante na nossa vida e as coisas poderão não fazer sentido sem ela. Já não há dúvidas nesta fase de ante-câmara do amor.

Estar apaixonado ocorre de um momento para o outro quando pensamos: Merda, já fomos... E o estômago começa às voltas e começamos a ficar ansiosos por não conseguirmos pensar em mais nada. Tudo é perfeito, e novo, e encantador. Falta o ar se não estivermos com o objecto da nossa paixão.

Amar pode acontecer durante a paixão, apesar de esse facto só ser passível de confirmação muito depois. Só quando a intimidade bate e o quotidiano se instala se consegue aferir verdadeiramente se o amor é verdadeiro. O amor verifica-se quando apanhamos roupa suja do chão da casa de banho e a colocamos no cesto da roupa, como gesto automático, sem qualquer tipo de recriminação, sendo que a roupa não era nossa. Quando o objecto do nosso sentimento já se tornou parte da nossa família.

Adorar... Adorar só se adora a Deus!!!!

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