Desde pequena que dorme de cabeça tapada, quer seja Inverno ou Verão. Sempre precisou de se sentir protegida do mundo que existe do lado de fora da cama. As orelhas tapadas para os bichos não entrarem e a boca também, apesar de dormir a fazer biquinho. De olhos fechados para que quem entrasse no seu quarto não soubesse se estava a dormir ou acordada, sendo que normalmente estava acordada, que as insónias sempre foram suas amigas. No entanto sempre sonhou, sempre fez planos, sempre imaginou mundos paralelos do lado de fora da cama em que pudesse ser livre e feliz. E como ainda não era crescida o suficiente para ultrapassar os obstáculos desde sempre visíveis, sonhava então com formas de o fazer, e fazia projectos. A única coisa que a interrompia eram os passos que ouvia a cada vez que encostava a cabeça na almofada, já que a cabeceira da cama estava encostada à janela. pum pum pum pum, ressoavam os passos na gravilha do caminho enquanto ela indagava quem passeava naquela rua àquelas horas. Seria o homem do saco? Um polícia ou um ladrão? Não sabia e por isso continuava no seu casulo de cobertores e edredons em redor da sua cabeça.
A nova cama também tem a cabeceira encostada à janela mas já não se ouvem passos. Mais tarde descobriu que não eram passos que ouvia quando encostava a orelha na almofada, mas a batida do seu coração a bombear de sangue o seu corpo de menina, enquanto sonhava. Hoje, quando encosta a cabeça, por mais que tente, já não consegue ouvir essa batida. O burburinho das preocupações e das contas de cabeça sobrepõe-se ao silêncio calmo dos sonhos, que continua a sonhar. Já não consegue ouvir o bombear do sangue através do bocado mais sagrado do seu corpo, ouvindo, ao invés o seu respirar em uníssono com o respirar de quem está sempre ali ao lado. Hoje em dia ouve a batida do coração que também é seu, do lado de dentro da cama e já não tem insónias. No entanto, sem se saber porquê, mesmo crescida dorme de cabeça tapada, quer seja Inverno ou Verão.
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